quarta-feira, 17 de março de 2010

“Identidade em constante transformação”

Fonoaudióloga clínica, doutora em Psicologia Social, professora da PUC-SP e escritora do livro, “O Surdo: Caminhos para uma nova identidade”, Maria Cecília de Moura, 61 anos, revela que a surdez não impede que o surdo se expresse na sociedade usando a linguagem de sinais, pelo contrário, ajuda e muito na comunicação. Mas devido o despreparo do sistema educacional e a falta de informação das demais pessoas sem esses problemas gera o preconceito não acontecendo a inclusão social e o elo entre ouvintes e deficientes auditivos

Por Ana Paula Caggiano

                      Foto: Ana Paula Caggiano
APC: Como é o seu trabalho de fonoaudióloga?
Maria Cecília: Procuro trabalhar com crianças e adolescentes com distúrbios de linguagem, baseado com sinais para o desenvolvimento especificamente da questão da surdez, ou o desenvolvimento dos restos auditivos ou da fala desses jovens, mas sempre fundamentando na Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) como primeira língua.


APC: Quais as dificuldades que o deficiente auditivo encontra ao aprender a Linguagem de Sinais (LS)?
Maria Cecília: Se é uma criança pequena não tem dificuldade nenhuma ainda, até porque está iniciando o processo. O que nós fonoaudiólogos encontramos muito são crianças que já passaram por processos de oralização e que não se deram bem. Essa é uma dificuldade grande, pois tentaram, mas não conseguiram e isso é uma decepção para eles e para a família. O trabalho não é só ensinar a “falar”. É também mostrar para os surdos que são capazes de desempenhar muitas atividades. Às vezes chegam crianças que não têm linguagem de sinais de maneira alguma, muito primitiva. Esse é um grande problema.

APC: Quais os primeiros sintomas que os pais devem perceber na criança quando ela pode apresentar algum problema auditivo? A quem recorrer?
Maria Cecília: Normalmente são os pais ou um parente muito próximo que reconhece alguns sintomas, que são: a criança não se vira quando se tem um barulho. Mas para a mãe é muito difícil de pensar que o filho possa ser surdo. Ela nega. Fala que o filho estava dormindo ou distraído. Então, deixe para essas mães poderem descobrir o tempo delas. Porque isso é um processo psíquico saudável. É um choque no começo para eles. Na hora que desconfiou de verdade tem que levar ao médico. Se for um bebê, uma criança pequena irá levar ao pediatra, mas se realmente estiver desconfiada, a mãe que insista para o encaminhamento otorrino para fazer uma avaliação das vias auditivas e a partir disso vai pedir para fazer uma avaliação fonoaudiológica para dar e verificar o uso de aparelho.
Dou um conselho importante aos pais, que eles ouçam várias opiniões de fonoaudiólogos e médicos para fazerem suas escolhas. Procurem, pesquise, perguntem e conversem com um grupo de pais de filhos surdos, associações que trabalhem com deficientes auditivos para saber mais disso.

APC: Quais são os problemas enfrentados pelos surdos no dia-a-dia na sociedade?
Maria Cecília: O preconceito é o maior dos problemas. Uma pessoa que vê o surdo usando sinais ou falando com uma voz diferente da do ouvinte (pessoa não surda) normalmente fica com medo, fica assustado. Eu acho mais do que isso, o descaso nas situações de trabalho, porque as pessoas o conhecem, só que não se preocupam com ele, em passar todas as informações, seja com linguagem de sinais, pela fala com leitura facial ou por escrito. O surdo é sempre deixado de lado.
Nas situações de trabalho e às vezes na familiar também, porque se a família conversa, fala muitas coisas e o surdo pergunta “o que está acontecendo?” Eles dão uma informação pequena, não completa e isso é um grande problema.

APC: Os surdos entendem o que falamos através da leitura labial e que escrevemos?
Maria Cecília: Podem saber, dependendo do trabalho pedagógico educacional que foi realizado com eles. Mas nem todos. Alguns são melhores podendo desenvolver a fala. Dificilmente encontramos uma pessoa totalmente surda, sempre resta um pouquinho auditivo que dá para aproveitar junto com o aparelho. Conheço surdos que lêem e escrevem muito bem, sem problema algum, e outros que não. Porém, não por conta da surdez que não é um impedimento de aprendizado de leitura escrita, o sistema educacional nosso é que é.

APC: Os surdos e mudos conseguem emitir sons? São os que mais utilizam a Libras?
Maria Cecília: Não necessariamente. Nenhum surdo é mudo. Falar ele consegue, o que ele precisa é de um atendimento fonoaudiológico para desenvolver a fala. E se a gente pensar que a linguagem de sinais é uma língua falada com as mãos, ele não é mudo. Podemos encontrar pessoas mudas com problemas de paralisia de corda vocal que já é uma questão mais orgânica, que pode ser surdo ou não. Mas o surdo de uma maneira geral, pode desenvolver a fala, às vezes com mais facilidade, com um tom de voz diferente do nosso.

APC: Desde 2002, a Libras foi reconhecida como forma nacional de comunicação e expressão, embora regulamentada em 2006. Mesmo assim, porque as escolas não estão preparadas para receber e ensinar crianças e adolescentes com problemas auditivos? E como mudar essa situação?
Maria Cecília: As escolas não estão preparadas para a inclusão de crianças e adolescentes surdas e eu não acredito simplesmente que ensinar Libras para os professores vai resolver o problema. Os cursos de Libras que os educadores podem fazer são curtos e é uma língua muito difícil de ser aprendida e você não vai saber tudo em apenas seis meses. Outro problema, é que a criança surda precisa de uma metodologia diferente para aprender a ler e a escrever, porque ela não escuta. Então o governo coloca classes bilíngües de surdos e ouvintes. A inclusão não funciona desse modo.
Os jovens precisam de uma boa escola bilíngüe em que a primeira língua seja sinais e a segunda o português escrito. O que eu vejo agora é uma barbaridade o que acontece com essas crianças dentro da sala de aula que ficam de lado, olhando sem nada entender. Costumo dizer que é assim: O professor finge que ensina e o aluno finge que aprende.

APC: Porquê a Libras possui estruturas gramaticais únicas e não se trata de mímica?
Maria Cecília: É uma estrutura completamente diferente, porque são características gramaticais próprias em que se usa o espaço para se comunicar. Na língua de sinais se põe o adjetivo primeiro para depois colocar o substantivo, como no inglês. Mímicas são gestos para adivinhação.
O sinal de cada letra é uma cópia do alfabeto que não é língua de sinais. Ele só pode ser usado para falar nomes de pessoas, de lugares, coisas que ainda não tem sinal próprio. Se você fosse falar uma frase, por exemplo, e tivesse que fazer cada sinal de letra das palavras seria muito demorado e cansativo. Por isso o cérebro humano vai juntando formas que possa ser mais sintética. A linguagem de sinais francesa, brasileira e americana tem muitos sinais em comum (30%) que se desenvolveram dentro da sociedade e outras passaram a existir, pois o homem foi testando e criando formas econômicas possível para a compreensão.
Mesmo que um surdo vá para outro país em que a LS é diferente, ele consegue se comunicar bem com outro deficiente auditivo, porque têm boa vontade em ambas as partes.

APC: Qual seria a preparação que as empresas devem ter para receber e ensinar o empregado surdo?
Maria Cecília: Primeiro conscientizar os funcionários dizendo que o sujeito surdo que vai trabalhar com eles não é deficiente, é uma pessoa inteligente, com capacidade. Mas vai ter que tomar alguns cuidados: falar de costas não adianta, ele não vai escutar, nem entender o que está acontecendo, tem que falar de frente, perguntar pra esse surdo se sabe fazer leitura facial e escrita, se sabe Libras. Se ele souber língua de sinais, a empresa deveria propiciar esses empregados a aprender pelo menos uma base mínima de LS para poderem se comunicar.

APC: Como você vê o papel da mídia perante os surdos?
Maria Cecília: A mídia deveria ser mais adaptada. O que infelizmente é impossível, pois a maioria das emissoras não têm programações voltadas para os não ouvintes. As poucas que tem os surdos precisam ter no aparelho de TV, o closed caption, uma legenda situada na parte inferior da tela que explica o que está acontecendo numa determinada cena, o que os personagens estão falando, o que o repórter está dizendo. Porém nem todos os deficientes auditivos possuem um nível de leitura bom o suficiente para poder estar lendo. Então o surdo deveria de ter a opção de escolher o closed caption ou uma pessoa para fazer a língua de sinais no canto da tela.

APC: Quantos surdos existem no Brasil?
Maria Cecília: Os dados são muitos contraditórios pela maneira como foi feito o senso.
No Brasil são 4,5 milhões de deficientes auditivos, mas isso engloba todos os surdos: Aqueles que já nasceram com o problema, os que ficaram quando crianças e adultos. É completamente diferente nascer com a surdez e ficar depois na velhice.

APC: Como professora de Libras na PUC-SP, o que você procura passar para seus alunos?
Maria Cecília: Por causa da regulamentação n° 5626, todas as faculdades que tenham Fonoaudiólogia e Licenciatura precisam ter cursos de Libras. Esta disciplina é dada por um surdo que ensina LS e por um ouvinte que sou eu. Então procuro explicar para os meus alunos e nas palestras que faço quem é o surdo, não vê-lo como deficiente, e sim como membro de uma minoria lingüística que tem direito de ter sua língua respeitada, entender que eles são um ser que percebe visualmente o mundo. E também mostrar como o fonoaudiólogo vai trabalhar com a criança surda na questão do letramento.

APC: Qual foi o objetivo que procurou atingir quando escreveu o livro lançado em 2000, “O Surdo: Caminhos para uma nova identidade”?
Maria Cecília: Na verdade esse livro foi minha tese de doutorado, cujo objetivo foi mostrar que o surdo tem possibilidade de se reconstituir como sujeito numa sociedade, utilizando a linguagem de sinais. A identidade de um indivíduo surdo é como de qualquer outro cidadão em constante transformação.
Quando terminei a tese quis publicar, porque achei importante que as pessoas ficassem sabendo dos aspectos da identidade da cultura surda, que antes era uma coisa totalmente desconhecida.

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